“Retenham bem essa máxima: quando a cooperativa for apenas mais um negócio, será um mau negócio, porque nesse plano será sempre derrotada pelas empresas capitalistas.” (Charles Gide, doutrinador cooperativista)
A doutrina condutora do movimento cooperativo ao redor do mundo, como é de amplo domínio, assenta-se em sete princípios, universalmente consagrados e largamente difundidos.
Entre eles – 6º da lista – está o da Intercooperação, inicialmente ungido como tal em 1966 (Congresso de Viena da Aliança Cooperativa Internacional – ACI), então assim versado: “Ativa cooperação entre as cooperativas em âmbito local, nacional e internacional”. Já o texto vigente foi definido em 1995, durante o Congresso da ACI em Manchester, com o seguinte teor: “As cooperativas servem de forma mais eficaz aos seus membros e dão mais força ao movimento cooperativo, trabalhando em conjunto, através das estruturas locais, regionais, nacionais e internacionais.”
Em tradução direta e simples, esse postulado indica que as cooperativas hão de cooperar entre si. E devem assim agir tanto para habilitarem-se ao uso da identidade “cooperativa” como para darem o exemplo à sociedade. Afinal, com que legitimidade uma cooperativa poderia conclamar alguém a fazer parte de seus quadros se ela própria não praticasse a cooperação? Nessa hipótese, estar-se-ia diante da máxima faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.
A intercooperação pode ser horizontal ou vertical. No primeiro caso, também conhecida como territorial, ocorre quando há relacionamento entre entidades de ramos diferentes (ex. cooperativas agropecuárias tomando serviços de cooperativas financeiras) ou de um mesmo ramo (ex. entre cooperativas financeiras, usualmente de sistemas diversos, ou cooperativas da área da saúde, compartilhando infraestrutura local ou prestando serviços aos cooperados ou clientes de entidades coirmãs). Já a intercooperação ou integração vertical pode envolver cooperativas de um só segmento, quando reunidas em torno de estruturas regionais e/ou nacionais, nesse caso também designada cooperação intrassistêmica (ex. sistemas cooperativos financeiros de dois ou três níveis), ou cooperativas de diferentes ramos, igualmente ligadas por arranjos regionais, nacionais e internacionais (ex. sistema OCB/Sescoop e ACI).
Há, ainda, um terceiro modelo de intercooperação, classificado como cooperação intersistêmica, que envolve grupos de cooperativas em formato sistêmico ou de empresas corporativas desses arranjos coletivos compartilhando portfólio, atividades, projetos e ações com outros grupos ou sistemas cooperativos do mesmo segmento (ex. parcerias comerciais de bancos cooperativos com cooperativas financeiras de outros sistemas).
As motivações para essa mútua ou múltipla colaboração, em parte já mencionadas na própria formulação do princípio (servir de forma mais eficaz o cooperado e elevar o ecossistema cooperativo), têm a ver com:
Essa é a teoria. Mas como andamos na prática? E por quê?
No que se refere à integração vertical, o cooperativismo financeiro está na dianteira, sendo referência para os demais ramos cooperativistas do país, além de já assumir um certo protagonismo na cena internacional. Contudo, há um conjunto de oportunidades para o aperfeiçoamento e a consolidação do modelo, notadamente pela racionalização de estruturas, soluções/serviços/atividades e componentes organizacionais recorrentes/paralelos entre cooperativas singulares, centrais, confederações e bancos cooperativos. Da mesma, há que se cogitar de novas aglutinações, tanto em sede de cooperativas singulares como ao nível de centrais, reduzindo o número de entidades hoje existentes. Outro potencial pouco explorado é o da intercooperação entre os diversos sistemas cooperativos (cooperação intersistêmica), que hoje, afora o compartilhamento (por força regulamentar) do FGCoop e de ações institucionais no âmbito da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), limita-se às parcerias entre os bancos cooperativos e cooperativas financeiras de outros sistemas.
Fora do ramo crédito, a colaboração intrassegmentos, no geral, é ainda muito tímida. Há, entretanto, destaques isolados, como algumas iniciativas de cooperativas agropecuárias, que se vêm unindo em estruturas comuns regionais para ganho de escala, qualificação de soluções, ampliação de portfólio e conquista de novos mercados (ex. Aurora/SC e Unium/PR), bem como de cooperativas da área da saúde, com o objetivo de facilitar a utilização recíproca de serviços (ex. Unimed e Uniodonto).
Abro, aqui, um parêntese para uma rápida, mas relevante, alusão à solidariedade como um dos compromissos da intercooperação intrassistêmica e intersistêmica. Com efeito, é dever indeclinável de todos impedir que cooperados venham a ter prejuízo em razão do insucesso de alguma cooperativa. Nessa hipótese, havendo indicativos concretos de descontinuidade, a incorporação ou a reorganização, com apoio financeiro se necessário, deverão ser as alternativas a considerar. É uma questão, também, de preservação do bom nome do movimento, e não apenas de proteção de uma determinada marca, uma vez que o problema que afeta a um atinge a todos. O foco, portanto, não devem ser os administradores da entidade, o empreendimento em si ou mesmo o sistema associado, mas as pessoas que acreditaram na proposta da cooperação. Neste particular parece remanescer dúvida sobre o papel de cada ator e o grau de responsabilidade do conjunto. A expectativa, portanto, é de que, sem demora, esse tema seja suficientemente debatido e bem compreendido, tendo, no caso do cooperativismo financeiro, o FGCoop e as instâncias corporativas intrassistêmicas como fóruns ideais.
No que diz respeito à prática da intercooperação horizontal inter-ramos, a escassez é bem maior, embora igualmente haja alguns bons exemplos de aproximação, sobretudo de cooperativas agropecuárias e do segmento da saúde com cooperativas financeiras (no último caso a colaboração é, inclusive, recíproca). Com esse preocupante desalinhamento filosófico, as cooperativas renunciam a oportunidades claras de multiplicação dos seus negócios entre elas, limitando o protagonismo cooperativo nos respectivos mercados e no contexto socioeconômico nacional. E mais: contribuem para a evasão de riquezas nas comunidades em que atuam, prejudicando os interesses dos próprios cooperados e da população local como um todo, o que, por sinal, atenta contra o .
O grande intervalo entre o ideal e o real, aliás, não é exclusividade do Brasil. Em muitos países lideranças cooperativistas e estudiosos da cooperação buscam entender o quadro e propor encaminhamentos para a questão. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, onde, recentemente, representantes do instituto Filene e da Cuna (Associação Nacional das Cooperativas Financeiras) publicaram amplos relatórios sobre o tema, tendo como alvo o relacionamento entre as cooperativas financeiras e entidades coirmãs de outros ramos.
Em síntese, lá e cá, temos sido muito contundentes na defesa do princípio, mas bem menos efetivos na sua observância. É dizer: no discurso, estamos bem; na ação, nem tanto!
Entre os ofensores da baixa intercooperação territorial sobressaem:
É importante que se diga, a esta altura das reflexões, que este assunto é recorrente em fóruns cooperativos por todo o país (e fora do Brasil). As impressões ora lançadas, em grande medida, são um apanhado do que publicamente se vem falando a respeito. Consolidar as críticas e ampliar o espectro de sua repercussão, portanto, atendem a anseios generalizados do movimento, notadamente como estímulo para a busca de soluções.
Mas e o que poderia ser feito, concretamente, para a modificação desse quadro?
O avanço no processo de intercooperação, aqui como em qualquer lugar do mundo, pressupõe, de um lado, atitudes firmes das lideranças, e, de outro, movimentos simples e de fácil implementação, tais como:
Em território brasileiro, no momento em que a sociedade, sob os efeitos de uma crise ética e econômica sem precedentes, clama por mudanças; aspira a algo novo, diferente; reivindica justiça socioeconômica …, o cooperativismo – solução do bem, por definição – encontra, como jamais encontrou, um ambiente amplamente favorável para alargar a sua presença. Para isso, no entanto, o movimento precisa estar unido e fortalecido!
Enfim, devemos acentuar a aplicação – lembrando que a ausência da prática equivale ao desprezo da teoria – dos ideais cooperativos, não deixando que se perpetuem cenários destoantes dos fundamentos e dos propósitos da causa. Do contrário, voltando à advertência de Charles Gide, declinando dos seus diferenciais e, por conseguinte, das suas principais virtudes, fatalmente chegará o dia – para algumas entidades este dia já chegou – em que “cooperativas” não passarão de empresas tradicionais. E, nessa condição, ao renunciarem ao movimento, fragilizam-se como empreendimentos socioeconômicos e perdem a legitimidade de ostentar a identidade mutualista.
“La fórmula del hombre que quiere triunfar: no luchar en solitario.” (Pe. Arrizmendiarreta, fundador do grupo cooperativo Mondragón, na Espanha)
Ênio Meinen, professor convidado da USP, FGV e de outras entidades acadêmicas para cursos de pós-graduação; coautor (com Márcio Port) do livro Cooperativismo financeiro: percurso histórico, perspectivas e desafios, e autor de Cooperativismo Financeiro: virtudes e oportunidades. Ensaios sobre a perenidade do empreendimento cooperativo, livro este também versionado no idioma inglês sob o título Financial cooperativism: virtues and opportunities. Essays on the endurance of cooperative entreprise (todos da editora Confebras, lançados em 2014, 2016 e 2018, respectivamente).